24
Mai06
O meu Tio
sissi
O meu Tio António é uma pessoa muito interessante. O meu Tio é um homem interessante. E bonito. Lembro-me, pequena, na idade em que a atenção ainda sopra inteiramente na nossa direcção, do meu pai me perguntar «Quem é o homem mais bonito que está nesta sala?», na esperança que a verdade da boca das crianças soletrasse o nome dele. «É o Tio António!» dizia eu, sorrindo e olhando para o rosto iluminado do meu Tio.
Fui crescendo e com o passar dos dias aumentava o afecto e admiração por ele. Era o pai que o meu pai não pôde ser e eu era feliz assim com dois pais. Ouvia-o sempre com o mesmo prazer e atenção, escutava os seus conselhos, perdoava-lhe os mesmos ralhetes.
Um dia perguntei-lhe: «Tio, porque é que não tens namorada?». Na sua imensa paciência, o meu Tio respondeu: «Querida, não queira ser adulta cedo demais, nem faça perguntas que não são para a sua idade. O Tio promete que um dia lhe explica.» E eu acreditava. Como acreditava quando ele me dizia que se tivesse fé em mim, nas minhas capacidades e nos meus sonhos, tudo correria bem. Tempos felizes esses...
Um dia o meu Tio levou-me a jantar ao «nosso» restaurante. Não estranhei a pompa daquela noite. O meu Tio tem o condão de tornar especiais os momentos, até os lanches de bifanas que o obrigava a comer quando vínhamos de mais uma tarde de bola em Alvalade. Vinha excepcionalmente aprumado. Reconheceria a milhas o cheiro da sua colónia. Clássica. E de dentro do seu fato de corte irrepreensível, já sentados na mesma mesa que nos acolhia todas as semanas, o meu tio diz-me: «O seu tio tem uma coisa para lhe dizer. Sou homossexual. Amo as mulheres, como bem sabe, que a amo a si, mas apaixonei-me por alguém como eu. Do mesmo género.» Disse-me isto com a mesma fleuma de sempre, mas percebi-lhe medo na voz. Eu limitei-me a sorrir. A passar as mãos pelos seus cabelos, beijar-lhe a testa e dizer-lhe: «Então e hoje, vamos variar, ou escolhemos a Perdiz como de costume?»
Três anos depois o meu Tio António e o meu Tio Luís mudaram-se. Acabaram-se as tardes temáticas. Os filmes franceses com Marrons au Chocolat e os Chás das Cinco com Scones. Os meus tios quiseram ter filhos e tiveram que mudar de endereço. Para escolherem uma criança a quem dar amor, a quem ensinar a tolerância e a diferença, apanharam o võo da manhã para um país onde o amor filial não tem sexo.
E eu fiquei sem este tempo de afecto, roubado pela estupidez e ignorância.
Um beijo Tios. Amo-vos.
Fui crescendo e com o passar dos dias aumentava o afecto e admiração por ele. Era o pai que o meu pai não pôde ser e eu era feliz assim com dois pais. Ouvia-o sempre com o mesmo prazer e atenção, escutava os seus conselhos, perdoava-lhe os mesmos ralhetes.
Um dia perguntei-lhe: «Tio, porque é que não tens namorada?». Na sua imensa paciência, o meu Tio respondeu: «Querida, não queira ser adulta cedo demais, nem faça perguntas que não são para a sua idade. O Tio promete que um dia lhe explica.» E eu acreditava. Como acreditava quando ele me dizia que se tivesse fé em mim, nas minhas capacidades e nos meus sonhos, tudo correria bem. Tempos felizes esses...
Um dia o meu Tio levou-me a jantar ao «nosso» restaurante. Não estranhei a pompa daquela noite. O meu Tio tem o condão de tornar especiais os momentos, até os lanches de bifanas que o obrigava a comer quando vínhamos de mais uma tarde de bola em Alvalade. Vinha excepcionalmente aprumado. Reconheceria a milhas o cheiro da sua colónia. Clássica. E de dentro do seu fato de corte irrepreensível, já sentados na mesma mesa que nos acolhia todas as semanas, o meu tio diz-me: «O seu tio tem uma coisa para lhe dizer. Sou homossexual. Amo as mulheres, como bem sabe, que a amo a si, mas apaixonei-me por alguém como eu. Do mesmo género.» Disse-me isto com a mesma fleuma de sempre, mas percebi-lhe medo na voz. Eu limitei-me a sorrir. A passar as mãos pelos seus cabelos, beijar-lhe a testa e dizer-lhe: «Então e hoje, vamos variar, ou escolhemos a Perdiz como de costume?»
Três anos depois o meu Tio António e o meu Tio Luís mudaram-se. Acabaram-se as tardes temáticas. Os filmes franceses com Marrons au Chocolat e os Chás das Cinco com Scones. Os meus tios quiseram ter filhos e tiveram que mudar de endereço. Para escolherem uma criança a quem dar amor, a quem ensinar a tolerância e a diferença, apanharam o võo da manhã para um país onde o amor filial não tem sexo.
E eu fiquei sem este tempo de afecto, roubado pela estupidez e ignorância.
Um beijo Tios. Amo-vos.